quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Olhar Acima

Tenho um olhar ávido, mas fugidio. O jovem olha com ganância pra o que não conhece, olha pra se satisfazer; o olhar é sensual, escravo do deleite e da ansiedade. Levo esses olhos sequiosos e eróticos. E por isso mesmo é preciso esclarecer a memória do que se viu. A Bolívia ficou para trás, dividida entre as memórias da alma, repartida entre os sons, cheiros, imagens e os outros sentidos. O que passou descansa na gente, e distância enraíza o vivido na carne. As tribulações de meu olhar de primeira viagem que não sabe apreciar com propriedade o que vê, mas apenas devora o que se mostra pela janela, vão amortecidas.

È bom contar, lembrar do dia longo que foi dois de Agosto. Uma amiga disse: parecia que estávamos em Cochabamba fazia dias. Sinto essa familiaridade estranha, ainda no início da viagem, era para ser apenas uma cidade de passagem. Foi um dia onde era impossível descansar o entusiasmo. Já nos acostumávamos à Bolívia pela janela lateral, do ônibus ou do Trem, mas que novamente movia nossas expectativas.

Mesmo dentro do ônibus o frio incomodou. Escuro lá fora, o vento frio parecia penetrar o vidro. Acordei quase assustado, a estrada interminável de curvas e adiante ao mesmo tempo meu reflexo contra o que meus olhos supunham e esperavam ser as montanhas. Quando ameaçava amanhecer, logo ali, após outra curva, revelava-se abaixo de nós: a cidade. Uma comichão aguçava os sentidos; meus olhos se esparramaram. Eu queria mostrar pra alguém, dividir com outra pessoa e mesmo sabendo a resposta perguntar: não é lindo? Rompendo o véu obscuro de noite e neblina, o que mais parecia ser um rio de luz serpenteando gigantesco arrancava admiração e curiosidade.

A cidade seguiu amanhecendo, e nós descíamos. Logo as primeiras casas, a terra branca, o aspecto árido, as paredes de adobe, poeira clara contra as montanhas. Um pouco além, casas de alvenaria e a desordem entre reboco e publicidade até o terminal de Buses. Sinal de uma cidade incrivelmente movimentada.

No terminal fazia frio, essa foi minha grande impressão. Estava tranqüilo. Malas nas mãos, o grupo se congratulava, todos empacotados e empilhávamos as bagagens num só lugar. Enquanto uns tomavam café, outros vigiavam os pertences do grupo e ainda havia outros que saíram procurando hotéis na cidade. Estava decidido, ficaríamos um tempo maior.

Depois de tomar café recebia a notícia, sem muito sucesso nas primeiras tentativas, finalmente haviam encontrado um bom hotel. Além de bom, era barato, os gastos eram uma preocupação geral. Nunca antes saíra do Brasil, a idéia de ficar sem dinheiro num país estrangeiro amedronta, quanto mais dinheiro, mais seguros. Minhas Inseguranças.

Partimos; no país o transporte urbano é diverso. Optamos por táxi, muito barato. O trânsito é estabanado, movido a buzinadas largas e enfáticas, as calcadas ao redor da rodoviária, tomadas de vendedoras; de bebidas típicas a desodorantes, elas vendem quase tudo. O taxi quase nunca foi um carro novo, a frota é antiga e os taxistas me pareceram bem-humorados, comunicamos: rua Yacucho esquina com outra que fugiu à memória. Algumas ruas, depois verificaria, repetem-se cidade após cidade na Bolívia, quase sempre nomes de batalhas famosas. Reparava o desenho de cidade que se nos apresentava; o canteiro central da avenida, de no mínimo meio metro de altura, uma mureta, os canteiros de cactos, o que meus olhos viam e o que via nos olhos dos outros.

O Hotel é um empreendimento novo, e muito característico, funcionam no mesmo prédio, um hotel, uma agência de turismo e um escritório de advocacia, além do fato de pertencer a uma igreja. Chama-se Rey Jesus. Foi o nosso canto, alívio que se traduzia em banho quente, cama a nossa disposição, sem deixar por isso, de espiar pela lâmina de vidro da janela, de um lado uma imponente montanha de pico nevado, e de outro, o chamado Cristo de Cochabamba, ou cristo índio; que é uma das muitas variações do Cristo redentor espalhadas mundo afora. O encantamento também vinha das misteriosas cúpulas escurecidas das inúmeras igrejas, da fortaleza das monjas claustras, da arquitetura de pedra bruta, de aspecto antiguíssimo; e das casas que pareciam ter vindo da europa com seus telhados específicos angulosos e a vida mesmo, corriqueira: os jardins, a horta, o gato se alongando sobre um telhado de barro branco anunciando o sol que ganhava a cidade. Os montes educaram-me a vista a reparar o inabalável horizonte alto, meus olhos foram arrancados do chão, suspensos naquilo que ressoou na alma assim que conheci melhor a cidade, despertou como uma das muitas canções e salmos ao fim do que realmente entendi o que queriam dizer quando falam dos montes que abraçam Jerusalém, senti-me num ninho, aprendi a dirigir a vista acima. Sem medo de parecer piegas, constatei, meus horizontes se alargaram e se traduzem numa vista mais perspicaz e sensível.

O Hotel hospedava exclusivamente nosso grupo, e agora se agitava. Os funcionários, apenas um casal extraordinariamente solícito, pareciam que foram pegos de surpresa, subiam de desciam as escadas, limpando o chão, os lances, arrumando o elevador e instalando os televisores. Eram os mesmos rostos inquietos e que a todo o momento via transparecer certa preocupação, como se os afazeres nunca terminassem, sempre como se estivessem pensando no que está por fazer. Era assim no café, como no resto do dia ou da noite.

Movimentar-se em grupo foi a oportunidade de colocar à prova o fruto do Espírito. Fiz questão de incorporar a dieta paciência e boa vontade. Sair juntos tomava horas de preparação e quando saíamos, minha alma indecisa sofria, quase nunca comemos em um só lugar, então fatalmente o grupo dividia-se e a partir daí cada um buscava seu itinerário não sem muita ponderação e momentos em roda contemplado uma a face do outro, os silêncios incômodos e os impasses que se tornaram repetidos na rotina.

Meu lugar preferido para comer na cidade da primavera eterna, título meio exagerado, mas com uma graça de fábula e de tudo não totalmente infundado, foi Buenos Aires, um restaurante não sei se de comida argentina, mas com título semelhante. E comer nesse pedaço do continente revelou-se um costume adorável. O almoço era composto por uma entrada de sopa e pão, seguido do que se chama segundo prato, que por sua vez antecede finalmente o prato principal, sempre uma carne acompanhada de batata. Aqui se tem batata em tudo e tudo de batata, pelo bom Deus essa era uma opção onipresente, barata e familiar ao paladar.

O guia de viagem, que levei mesmo imbuído de comedida vergonha e receio, acenava para o clima ameno da cidade. O que se revelou frio intenso no anoitecer, noite e manhã e um calor inesperado à tarde que me obrigou a desmontar boa parte da roupa com que planejei sair. Nesse calor nascente, e iluminados por uma intensa claridade de dia pleno, colocamos os pés nas calçadas revistando a cidade, com suas praças que julguei impecáveis, as ruas que estreitavam-se pelos becos e a vegetação ora discreta, ora exuberante, contudo mais discreta que outra coisa.

Um momento decisivo, a hora das compras. Promessas de preços baixos na cabeça e a maravilhosa multiplicação do câmbio estimulavam a tentação. Por isso, após o passeio de fim do almoço e um breve descanso no hotel, voltamo-nos as imbricadas ruas dos arredores da rodoviária, era a feira, ou melhor, as feiras, o que para nós não fazia a menor diferença. Além da rua de pista dupla das calçadas cobertas de bancas, logo ali, pouco além de nosso ponto de chagada na cidade encontramos o esperado mercado. Procurávamos artigos interessantes, lembranças e munição contra o frio, afinal La Paz estava por vir. Aquelas passagens estreitas multicoloridas, qualidade da cultura local, com uma miríade de artigos espalhados pelo chão, bancas além dos pendurados foram uma experiência cativante. Aprendemos a pechinchar até o último pesito possível, e foi a oportunidade de arriscar o espanhol e improvisar ao sabor dos imprevistos e incompatibilidades culturais. A todo lado uma impressionante oferta de sentidos. Gente de todo tipo em todo lugar.

Ao findar do dia a noite é suave, e veio despretensiosa, sem alarde, revelando uma cidade calma e pacata banhada pela densa luz amarela dos postes de fiação caótica. O grupo monopolizava as calcadas, que agora além das vias principais ficaram mais estreitas. Caminhávamos a procura de jantar, o grupo não se decidia, buscar comida em outro país é curioso. Pra minha surpresa, terminamos, cheios de receios, numa pizzaria que prometia seja o que isso quer dizer, New York Style Pizza, pedimos uma pizza de proporções monstruosas, se não me engano com 32 pedaços, mas enfim era apenas uma pizza que custou mais de 200 bolivianos. Conversávamos também na volta, fui para o hotel desejoso pela cama a minha espera, cama confortável para descansar a ansiedade e expectativa do dia que viria.


Por João Daniell

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